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Em esquema, podemos dizer que a cultura arquitectónica do final do século xx toma duas abordagens que fazemos corresponder a duas décadas: a procura de uma empatia com os “opostos” da arquitectura (o quotidiano, o efémero, o comercial), no pós-modernismo, anos oitenta; e por reacção a esta permissividade, um recentramento nas componentes abstractas da arquitectura de que a obra de Peter Zumthor é expoente, nos anos noventa.
     Deste ponto de vista, A rua da estrada, um livro de Álvaro Domingues publicado pela activíssima Dafne Editora, é devedor do clima dos anos oitenta: a aproximação a modos informais de construção, fazendo ressaltar a sua hibridez e engenho. Mas, como veremos, o pathos de A rua da estrada é muito diferente das abordagens que Manuel Vicente introduz em Portugal por referência a Robert Venturi, já nos anos setenta; ou da geração do Depois do Modernismo, nos anos oitenta.
     Para lá de um livro, A rua da estrada é também um acontecimento. Às impressionantes fotografias junta-se a verve do autor. Em tom irónico, portanto sério, Álvaro Domingues apresenta um conjunto de edifícios e estruturas que definem a “estrada-rua” como “o elemento mais banal das formas e processos de urbanização em Portugal”  (p. 13). Embora tenha esta formulação urbanística, na prática, o centro do livro são as construções, o magnetismo livre das suas formas e feitios. E aí estamos perante um certo déjà vu ou um tão em voga revivalismo eighties: recordemos o debate sobre as “casas de emigrantes”1, as “viagens na minha terra” de José Manuel Fernandes2, a “vida moderna” de Manuel Graça Dias3, a publicação de Casas de sonhos4 (aliás citado).
     No entanto, este livro encontra pertinência num certo ressentimento que existe hoje face aos arquitectos; em particular, àqueles que são “sempre os mesmos”. O subtexto de A rua da estrada é antiarquitectura de “escola” e isso funciona bem, entre nós: permite descomprimir; rir um pouco; entrar no fim-de-semana. Afinal sempre há um leão à espreita de uma obra de Siza (p. 195).
     Explicitamente, o livro é dirigido aos obsessivos da cidade histórica e aos legisladores, incapazes de entender a natureza dinâmica e a polissemia da “estrada-rua”. Implicitamente, os arquitectos, entendidos como legisladores da beleza, são os visados.
     O tom do livro é por isso de desafio, e de um certo alvoroço. Infelizmente, este desafio já foi lançado, há quase 40 anos, por Robert Venturi e Denise Scott Brown em Learning from Las Vegas. E com um assinalável maior risco: tratava-se de “aprender com” o “vernáculo comercial” e não somente de lhe fazer o retrato. O objectivo central era superar o gosto moderno, entrando em zonas obscuras que, por exemplo, Susan Sontag tinha definido como camp. Suspendendo a “questão do gosto”, porque senão “ficaríamos emaranhados entre a alta e a baixa culturas” (p. 146), Álvaro Domingues põe de parte o nervo central da abordagem pop. A negociação do gosto é crucial para Venturi em Las Vegas, como depois para Manuel Vicente em Macau: a ideia era atravessar o lugar dos outros, dialogar com os “opostos” da arquitectura, expandir o campo. Neste sentido, o objecto de estudo nunca era transformado em freak show. Pelo contrário. A pergunta era: como chegamos à beleza através deste caminho – já que todos os outros foram gastos? O gosto não se suspendia; dilatava-se. Como diz Manuel Vicente em 1974: “Perante a sanefa de veludo e a lanterna de ferro forjado, vamos ficar toda a vida a chorar, ou vamos tentar dar uma volta?”5 Não se tratava de caçar aberrações ou coleccionar excentricidades. Cultivava-se o gosto do contrário; era fundamental entrar no seu léxico, na sua razão de ser.
     Sem se apropriar desta discussão e sem o rasgo do “aprender com”, A rua da estrada trata a construção popular com troça, ou ironia, ou intelectualismo, conforme o trocadilho à mão. Talvez inspirado pelo que o próprio autor chama “Casas kitadas”, é um texto “kitado”, em que para cada rotunda ou garagem surge um deleuze, um boticelli ou um derrida. A citação erudita “kita” A rua da estrada como estátuas gregas a caminho de um stand de automóveis. (E, já agora, quando “kita” com Venturi, no exemplo da Póvoa, falha completamente: no modo venturiano, o “duck” não é o modelo de eleição, mas sim o “decorated shed” – p. 93).
     Estranhamente, talvez como consequência da estratégia de choque e espanto de Álvaro Domingues, a “estrada-rua” é entendida como fenómeno português, quando obviamente seria preciso alugar uma enciclopédia para fazer um registo análogo em qualquer área urbanizada da América Latina. Os próprios “Edifícios montra” são uma realidade comum na periferia das cidades europeias industrializadas, como expediente para anunciar ou vender os produtos que se fabricam ou comercializam. No livro, estas estradas falantes e o seu engenho alucinatório parecem conduzir-nos para o fado português de sermos feios, porcos e maus, confirmando o P de PIGS, como agora se diz.
     De qualquer modo, e depois dos flirts dos anos oitenta, é preciso dizer que a estetização do desenrascanço, que é essencialmente o tema do livro, manipula a realidade, por vezes violenta, às vezes apenas naïve, que trata. Esta muita intuição e engenho da “estrada-rua” é também prova de chico-espertismo; ou, às vezes, de pura necessidade de sobrevivência. O subdesenvolvimento cria ondas de surpresa. A confusão confunde-se com criatividade. Não há nada mais cinematográfico que o desenraizamento: um país novo dentro de um país velho; um homem junto a um letreiro que o faz partir.
     Mas o que vamos fazer com isto? Patrulhar os pavimentos que faltam para fazer da rua menos estrada? A estrada deve ser transformada em rua? O “problema” resolve-se “entre o asfalto e os edifícios” (p. 15) como a certa altura deixa escapar Álvaro Domingues? E as fotografias serão capazes de captar esse momento de felicidade?
     A rua da estrada tem graça mas funciona em curto-circuito. Em loop. Não há nada a fazer senão uma perpétua ironia para todo o sempre. “We’re on the road to nowhere”, já diziam os Talking Heads, em 1985. Entretanto aconteceu muita coisa: tentámos sair; tentámos voltar, de outro modo.
     No plano mediático, A rua da estrada é um sucesso – oh como nos rimos na PK! Para a cultura arquitectónica, perdendo-se a dificuldade da empatia com estes objectos, sobra um gesto diletante, circense. Na demanda pop, a linha separadora com o cinismo foi sempre muito ténue. Aqui há uma clara passagem. Pode fazer estremecer os legisladores e os culturistas do centro histórico com o que eles já deviam saber. Mas os arquitectos são por natureza hipersensíveis a este tema. O grande avanço dos anos sessenta/oitenta foi tentar lidar com ele: com ironia, para se sobreviver, mas sem troça. Para lá do freak show agora encadernado. A estrada-rua já foi bela para os arquitectos; já deixou de ser, por cansaço, por inevitabilidade. 
     Para voltarmos ao início do texto, o recentramento, na dimensão abstracta e disciplinar da arquitectura, que vingou nos anos noventa, provou também as suas limitações. Como uma Joana Vasconcelos, de um modo histriónico e sem maneiras, A rua da estrada contribui para voltarmos à rua, com ou sem estrada. E essa parte é boa e recomenda-se.|


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